«Uma filosofia que não inclua a possibilidade de fazer adivinhações com grãos de café e não consiga explicar isso, não pode ser uma verdadeira filosofia» (G. Scholem) |
Corporeidades heteronímicas do Eu: Breve reflexão em torno da Estética pessoana
[in Cadernos UFSComunicação, nº 5, Aracaju, Editora da Universidade Federal de Sergipe, 1998, pp. 19-25]
(...) Creio mais no meu corpo do que na minha alma,
Porque o meu corpo apresenta-se no meio da realidade.
Podendo ser visto por outros.
Podendo tocar em outros,
Podendo sentar-se e estar de pé,
Mas a minha alma só pode ser definida por termos de fora.
Exista para mim nos momentos em que julgo que efectivamente existe
Por um empréstimo de realidade exterior do Mundo.
Alberto Caeiro Se quiserem que eu tenha um misticismo, está bem, tenho-o.
Sou místico, mas só com o corpo.
A minha alma é simples e não pensa.
Alberto Caeiro A filosofia é a teoria das multiplicidades. Toda a multiplicidade implica elementos actuais e elementos virtuais. Não há objecto que seja puramente actual. Todo o actual se envolve por um nevoeiro de imagens virtuais. (…) Dada a identidade dramática dos dinamismos, uma percepção é como uma partícula: uma percepção actual envolve-se de uma nebulosidade de imagens virtuais que se distribuem sobre circuitos em movimento, cada vez mais afastados, cada vez mais largos, que se fazem e que se desfazem. São recordações de diversas ordens: são ditas imagens virtuais na medida em que a sua velocidade ou a sua brevidade as disponha aqui sob um princípio de inconsciência.
Deleuze, «O actual e o virtual», (1ª Parte)
§ 1. A experiência contemporânea e o rápido desenvolvimento da Internet e das tecnologias da informação tem vindo a demonstrar a necessidade de análise do efeito da interactividade e da construção (mediada) dos «interfaces», associada à construção da realidade virtual e da vertigem da simulação do corpo (do sujeito) maquínico. Objectivamente, e dentro duma tradição do pensamento que remonta à caverna platónica, se o Espelho de Alice e os heterónimos pessoanos são a continuidade (interseccionista) de um «fora» e de um «dentro»; então, a mimetologia tecnológica, ao impor uma figura única e aparentemente neutra (a da interactividade) e, consequentemente, uma fusão, desloca essa constante reversibilidade para uma ininterrupta corrente da consciência (stream of consciousness) colectiva (ciberespaço, «aldeia global»), num fluir constante de imagens. Consequentemente, a divisão maquínica (digital) transforma o nosso espírito, já não num rio (heracliteano), mas sim num arquivo e numa database.
Em cada um dos dispositivos heteronímicos verificamos essa ambivalência, por exemplo, esse ver Mora através do que diz, vendo Pessoa (e cada um dos outros heterónimos) pelo que não está lá , num constante jogo de reversibilidade figurativa e de produção (gradativa) da ilusão, segundo uma «geometria do abysmo» (Bernardo Soares). Acrescente-se que Fernando Pessoa foi, sem dúvida, dos poucos autores da Modernidade que melhor colocaram o problema da superfície e da ilusão enquanto processo demiúrgico de criatividade. Também aqui, nestes tempos da «realidade virtual», das redes cibernáuticas povoadas de «cyborgues» e do «corpo protésico», Pessoa ajuda-nos a encontrar portas de saída para esse «sujeito em crise» através dessa tal «metafísica das sensações», em que a multiplicidade das sensações (e, consequentemente, dos heterónimos) equivale à pluralidade dos deuses, e, por isso, ao Regresso dos Deuses e à Reconstrucção do (Neo)Paganismo