[in Lisboa Metropolitana, Ano 2, nº 13 Abril de 2001, pp.8]
Numa casa, nem sempre é certo que os Lares estejam com os Lares e os Penates com os Penates: frequentam-se, passeiam juntos pelos caixilhos do estuque ou pelos tubos dos termo—sifões, comentam os assuntos da família, é fácil brigarem , mas também podem dar-se bem durante anos e anos (...).
Italo Calvino, As cidades invisíveis
Em Novembro de1993 foi criada e instalada, pelo então Vereador da Cultura, Dr. João Soares, a partir de uma reconstrucção arquitectónica sábia e criativa a cargo da arquitecta italiana Daniela Ermano de um prédio devoluto e muito arruinado, a «Casa Fernando Pessoa» ali para os lados de Campo de Ourique, mais precisamente, Rua Coelho da Rocha 16. Este espaço, em cujo primeiro andar direito viveu Fernando Pessoa durante os últimos quinze anos da sua vida, só saindo de lá para morrer no hospital de São Luís dos Franceses, a 30 de Novembro de 1935, desde logo se tornou um Espaço de Memória da Cidade onde, por excelência, se «respira» Poesia.
Nela encontramos alguns objectos pessoais do Poeta (as boquilhas, os óculos, uma fosforeira e alguns cadernos de notas, bem como algumas recordações dos pais que sempre conservou); a célebre cómoda, encostado à qual, de pé, e segundo diz, escreveu «de rompante os trinta e tal poemas de ‘O Guardador de Rebanhos’» no não menos célebre «Dia Triunfal»; e a estante e a arca dos manuscritos, objectos que sempre o acompanharam nas suas várias mudanças de residência, bem como a biblioteca com cerca de mil e cem volumes, na sua maior parte assinados e anotados.
A Câmara de Lisboa pretendeu, e bem, com este espaço, criar, não uma Casa-‑Museu (até porque, como se viu, o número dos objectos que constituiriam a componente museológica é reduzido), mas sim um espaço cultural dinâmico, promovendo exposições diversas, incluindo intervenções sobre o espaço do «quarto Fernando Pessoa», aberta à criatividade dos pintores, escultores, fotógrafos e/ou performers, para além de outras actividades variadas que incluem a realização de ciclos de conferências, colóquios e leitura de poemas, nacionais ou estrangeiros (são disso exemplos os Encontros Europeus de Poesia, por exemplo), lançamento de livros, mesas-redondas, etc.. Numa outra vertente, e aproveitando-se do legado, a Casa Fernando Pessoa catalogou entretanto a biblioteca pessoana, alargando o seu âmbito e património com a aquisição de livros das várias edições que por aí vão proliferando (de e sobre ele, nacionais e estrangeiros), bem como com as várias traduções da sua obra para as várias línguas. Evidentemente, a consulta dos livros que pertenceram a Pessoa é, como se impõe, de consulta reservada, sendo livre o acesso ao restante da biblioteca. A esta documentação veio a acrescentar-se a aquisição, à Biblioteca Nacional, dos microfilmes do espólio e ao Instituto do Livro da colecção de fotografias, sendo por isso possível consultar no mesmo espaço o espólio e a biblioteca, eventualmente, no sentido de se cruzar informação, o que, como se sabe, em Fernando Pessoa é fundamental. O catálogo está informatizado no sistema Porbase, tal como acontece na Biblioteca Nacional e na rede das Bibliotecas Municipais, sendo possível a disponibilização e troca de informações. Há ainda a acrescentar, neste plano, a documentação multimédia respeitante ao Poeta, adquirida ou fruto da doação de amigos da Casa. Por fim, e last but not the least, a divulgação quer da própria biblioteca quer das actividades da Casa tem estado a cargo da revista Tabacaria, de cuidado design e que surgiu duma feliz parceria entre a Câmara de Lisboa e a Contexto, indo já no seu número nove e em novo ciclo editorial.
Vem tudo isto a propósito do meu sonho, ambição e desejo para esta Cidade do futuro. É que, conhecendo como conheço o projecto inicial para aquele espaço nas suas diversas valências; e, por outro lado, enquanto especialista, conhecendo a obra e o pensamento do Poeta, interrogo-me variadíssimas vezes sobre a razão de não se criar ali (e é ali que essa actividade demiúrgica tem sentido) um pólo aglutinador de investigação/informação e difusão do «laboratório» pessoano. Refiro-me, por exemplo (e é um exemplo entre outros possíveis nesta linha), ao abandono da ideia inicial de um dos espaços da Casa ser ocupado por um verdadeiro Gabinete de Investigação e Centro de Estudos (presente no projecto inicial da Daniela, inclusivé na construção da estrutura da rede de fibra óptica), incluindo uma componente tecnológica e computacional forte (hoje, na Era da Sociedade da Informação não se pode pensar de outra forma). Sendo o trabalho deste Gabinete, numa primeira fase, centrípeto — isto é, ocupando-se, através de parcerias e de protocolos de intenções com várias instituições, públicas e privadas, e em estreita colaboração entre os maiores especialistas (nacionais e estrangeiros) nas diversas áreas abordadas pela sua obra, nomeadamente, trabalhando cientificamente, isto é, com rigor, os materiais (biblioteca e espólio) —, deveria partir, posteriormente, para outras Viagens e outros Mundos, por exemplo, interagindo com o pensamento e obra de outros Poetas e pensadores e, evidentemente e sobretudo, constituindo-se como arquivo, passível de, a cada momento, ser consultado, on e off-line. Com efeito, não se consegue perceber (e dificilmente se aceita) que um espaço por excelência como este é e possuidor de um tesouro que todos sabemos, não se disponibilize a construir esse «laboratório» e rectaguarda internacional dos estudos de e sobre Fernando Pessoa, constituindo-se como pólo aglutinador de uma Memória que a todos nós pertence. Estou convicto que os apoios não faltariam se para tal fossem instados a colaborar, visto tratar-se de um projecto nacional.
Que o sonho se torne realidade e que «o Mundo da Casa» se transforme na «Casa do Mundo» (e nem seria muito difícil), pois é tempo de mudança (todo o tempo o é). A obra e pensamentos de Pessoa agradecem. E nós, cidadãos do mundo, também.
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